Cães
Quando fui chamado no rádio da ambulância pela operadora da madrugada pra uma emergência que envolvia um idoso seriamente ferido, não imaginei que minhas noites de sono jamais seriam tranquilas. Estou sem dormir há três dias e já faz um bom tempo que não consigo comer nada além de biscoitos de sal e beber um pouco de água. Comecei a escrever esta carta, mãe, do meio da folha, porque não sabia quanto desta história eu seria capaz de te contar. Quero que você entenda exatamente como eu estou me sentindo logo aqui em cima. Estou chorando um pouco ainda. Mas acho que tem tudo aqui. Desci correndo da viatura. Antes mesmo do motorista parar completamente. Sentei o pé na porta da casa. Nem pensei em bater. O chão molhado da escada de entrada me deu um escorregão que quase me derrubou. Fiquei nervoso com o barulho de latido dos cachorros. Muito alto. Ensurdecedor. Tinha pêlo dos bichos em tudo. Marcas de urina nas paredes e o cheiro de amoníaco fez meus olhos marejarem. Todas as janelas tinha cortina. Luz, só no fim do corredor, da lua mesmo, que entrava pela porta da cozinha. Essa dava para o quintal e estava escancarada. Segui o barulho dos cães e corri pra lá. Parecia uma chácara. Bem no meio da cidade, um quintal cheio de árvores e muito úmido abrigava uns 30 cachorros de todas as raças e tamanhos. E também as suas merdas. Lá no meio. Mas bem no meio, tinha uma velha. Toda ensaguentada. Nem olhei para os cachorros. Gritei pro Laércio, meu parceiro da noite e me ajoelhei ao lado dela procurando os sinais vitais, como de costume. Encontrei batimentos fracos e respiração tranquila. Quando eu coleit o ouvido no rosto dela, comeceu a cantar, mãe. Cantava aquela música que o pai cantava pra gente dormir. Me senti salvando você. Tentei checar a consciência dela, mas ela não parava de cantar. Às vezes entoava uns nomes, que eu deduzi sendo dos cachorros. O Laércio chegou com a maca e eu não tinha nem cortado a roupa dela ainda para identificar os ferimentos. Quando eu comecei, percebi que ela estava toda mordida. Dos cachorros. Senti o gosto do meu jantar subindo do estômago. Levantei mas não consegui segurar. Vomitei. Eles estavam comendo a velha. A carne dela. O Laércio chamou o motorista pra ajudar. Eu não consegui mais nem olhar para ela. Comecei a olhar em volta e ver o sangue na boca dos bichos. Que não paravam de latir e uivar. Eu segui os dois com a maca de volta para a viatura, mas daquela vez, percebi que todos os móveis da casa estavam cobertos por lençóis. A única coisa que chamava a atenção naquela casa era um caderno todo amarelado e amarrado com barbante sujo, que estava em cima da um aparador, em pé, encostado num espelho rachado. Esse era o único móvel não “embrulhado” pelos lençóis. Eu peguei o caderno. Nem pensei. Ainda não sei o porquê. Levei comigo. No hospital eu nem tive tempo de seguir a velha. Fui pra uma das unidades do PS para ser medicado. A enfermeira era minha amiga, mas eu nem consegui conversar com ela. Só tomei o comprimido que ela trouxe. Acordei no alojamento dos paramédicos. O Laércio já tinha ido pra casa. O Douglas e o Jairo, que são os caras do turno da manhã, tinham acabado de chegar e estavam esperando uma chamada. O Jairo me viu abrir os olhos e entregou o livro na minha mão dizendo que o Laércio avisou pra eles que era meu. Só me lembro de perguntar qual foi o médico que atendeu nossa última vítima. A velha. Levantei e fui procurar o Dr. Luiz. Descobri que a velha já tinha morrido. Múltiplos traumas causados pelas mordidas levaram a um quadro de hemorragia impossível de ser revertido. Tomei café sem falar com ninguém. Fiquei quietinho pra não ter que fingir bom humor. Você sabe como eu sou. Peguei o ônibus e abri o caderno. Instintivamente comecei a ler. Daí não parei mais. Entrei em casa, tranquei a porta, fui pro quarto e fiquei 8 horas lendo cada página do caderninho da velha. Ah, eu tinha ouvido que o pessoal do PS fez uma piadinha sobre ela. Chamaram ela de “A velha mais gostosa da cidade”. Engraçado é, mas só pra quem não leu aquela merda de diário. Era uma história de vida, pô. Perdeu os pais cedo. E uma irmãzinha pequena morreu junto com eles. Foi levada para um convento e ensinada para ser feira. Igual a tia Lúcia. Só que ela levou os cachorros. Na casa, com os pais, tinha um canil. Cada página do diário descrevia dia por dia da vida dessa velha dedicada aos cachorros. Uma história de amor mesmo. Coisa Linda. Se não fosse a última página. Parecia que ela tinha parado de escrever o diário há um bom tempo. Só a última página, escrita com uma caneta diferente e já com uma letra bem prejudicada por termedeiras, é que indicava um dia recente. Nem vou tentar fazer uma versão. Vou transcrever pra você, mãe. Joguei o resto todo fora. Guardei essa página. Ando com ela para onde eu vou. É um peso que eu não aguento mais carregar sozinho. O nome dela, mãe, é Joana. Igual a você. “Cansei, Jesus. Cansei de pagar todos os dias pelo meu pecado. Quero sair daqui. Quero paz. Me confesso, Senhor, agora para que todos saibam a pecadora maligna que eu fui por toda a vida. Manchei de horror cada manto da casa do senhor e castiguei toda minha família por inveja, ciúme e egoísmo. Meus pais não morreram por acidente, como todos dizem. Nem minha irmã. Fui eu, meu Deus. Fui eu. Naquele dia que eles saíram para as compras e me deixaram, ao nove anos, cuidando do maldito bebê, eu me enchi de coragem e cometi o pecado. Tranquei a Elisa no canil. Tudo já estava planejado. Cuidei para que na semana anterior os animais não recebecem comida suficiente. Eles comeram ela, Senhor. Viva. Os gritos de dor eu escuto até hoje. Nem ligo mais. O que me incomoda é o brilho do olhar dos meus pais. Me ofusca o sono. A faca que eles usaram para cortar os pulsos é a mesma que eu levei embora comigo. Uso ainda para cortar laranja. A fruta preferida da minha mãe. Mas só até hoje. Finalmente tomei coragem de pagar pelo meu pecado. Não me arrependo, ó Deus. Nem por um minuto. Mas justiça é justiça”. Mãe. Eu te amo. Jonas.